Por CFB em 18/05/2023
Trecho do discurso do Vice Governador e Secretário Estadual de Cultura do Estado do Rio de Janeiro Darcy Ribeiro, durante a solenidade de assinatura do convênio de cooperação na restauração e instalação da Casa França Brasil. O documento foi assinado nas instalações da Casa França-Brasil, a 16 de outubro de 1985, por Darcy Ribeiro; pelo Ministro da Cultura da França, Jack Lang; pelo Ministro da Cultura do Brasil; pelo representante da Fundação Roberto Marinho e pelo presidente da Rhodia do Brasil.
Estou seguro de que se justifica plenamente sua implantação por muitas razões. Um espaço destinado a fixar e a divulgar o olhar francês sobre o Brasil, a visão com que os franceses, ao longo de cinco séculos, viram os brasileiros, é um projeto incitador e belo… Vamos repassar, brevemente, como quem roda um caleidoscópio, a história das relações de franceses e brasileiros… De fato, foi a França que fundou a cidade do Rio de Janeiro. Na verdade, não queriam nos colonizar, então. O Rio francês foi fundado tentando criar, aqui, a primeira República Socialista Cristã. Os huguenotes, perseguidos na França, e os calvinistas, animados pelo próprio Calvino, aqui vieram ter para criar a Cidade Pia, uma civilização verdadeiramente cristã que a Europa não conseguiu plasmar.
Vejo a chegada daquelas naus, depois de meses de travessia oceânica, cheias de franceses hirsutos, barbudos, suados, marcados com as feias feridas do escorbuto. Cada um deles com sua bíblia na mão. Sonhando uma vida seráfica e pura. Da borda de suas naus de velas enfunadas, eles olhavam espantados, de olhos arregalados, os meus índios e as minhas índias com as partes pudendas à mostra, cheios de alegria de viver, saltando e gritando na praia e se perguntando quem era aquele gentio que vinha vindo em naus tão prodigiosas. Foi naquele momento, creio eu, que os franceses começaram a ser chamados pelos índios de maires, gente de Maíra, ou gente de Deus. Um deus estranho, diferente do cristão, mas que acabaria por converter mais franceses do que os calvinistas converteram aqui.
Expulsos do Rio, os franceses continuaram andando pela costa, como piratas e corsários, trocando bugigangas, espelhos e miçangas – fazem isto até hoje… – com os índios, que lhes davam em troca toras de pau brasil. Nossas relações, porém, talvez porque incidentais, foram sempre melhores do que as que os índios mantinham com os perós portugueses que queriam deles um trabalho de sol a sol, para produzir o açúcar com que adoçavam as bocas européias. Neste comércio de escambo, tanta intimidade tomaram os seus franceses com os meus índios que até se deram ao gosto de participarem de festivais de antropofagia.
Sim, Senhor Ministro, alguns compatriotas seus andaram comendo gente aqui nessas plagas. Sabe-se até do caso de um arcabuzeiro alemão, mercenário dos portugueses, que os franceses não quiseram trocar por um machado de ferro e aconselharam que os índios o comessem porque era grande e estava gordo. Os índios se recusaram, porém. O tal alemão era muito frouxo, chorava e se sujava cada vez que tentavam fazê-lo participar, como comida, de um ritual de antropofagia.
Depois do Rio, os franceses, mais uma vez, tentaram se estabelecer em nossas terras. Disto resultou a fundação da nobre e bela cidade de São Luiz do Maranhão.(…) Lá, muitas foram as surpresas. Entre elas, lembro-me dos registros que dois curas franceses deixaram daquela aventura desventurada. É de recordar, sobretudo, um diálogo patético de um velho índio, muito sábio, que perguntava aos padres se eles não tinham confiança no seu Deus. Por que a gente francesa se dá tanto ao vício de acumular bens e guardar coisas, perguntava o índio. Acaso pensam que o mar vai deixar de dar peixes? Que a floresta não dará mais frutos? Que as roças não darão safras?
Nas décadas e nos séculos seguintes, franceses e brasileiros conviveram de mil formas, sempre mais cordiais que conflitivas porque mais livres que impostas. Claro que houve exceções, como no caso dos corsários que tomaram o Rio de Janeiro de assalto e o venderam para nós, como se retrata no musical esplêndido que está hoje, no palco de um teatro do Rio. Mais tarde, tiveram os franceses o nobre papel de pregadores subversivos dos princípios revolucionários da liberdade, igualdade e fraternidade. Conseguiram até – o que me parece espantoso – fazer a cabeça de alguns conterrâneos meus, mineiros. Inclusive de um deles que acabou sendo enforcado e esquartejado, tão perigoso se tornara como combatente pela liberdade e como republicano convicto. É Tiradentes, um francesista .
Hoje, com Jack Lang, são os franceses que voltam. E voltam para que, pergunto eu? Um dia eu lhe disse que tinha medo das tão grandes atenções que os franceses dão, agora, à América Latina. A última vez que isto sucedeu foi quando, sob Napoleão III, criou-se, em Paris, a expressão “América Latina”. Mas seu efeito principal foi nos impor um rei, Maximiliano, levado por tropas francesas para ser imperador do México, com ambições de reinar sobre a latinidade do Novo Mundo. Felizmente o projeto gorou.
Agora, sob o mando do socialista Mitterrand, podemos já receber os franceses e conviver com eles sem maiores receios. Tanto porque, hoje, temos sobre os demais povos latinos a superioridade , pobre é verdade, de sermos a maior massa de neolatinos nesse mundo. Mas não se impaciente, Senhor Ministro; qualquer dia, prometo eu, nós seremos uma nova Roma ou, melhor, uma nova França. Um centro novo de criatividade cultural da latinidade, de uma latinidade vestida de carnes índias e negras, de uma latinidade mestiça, que há de florescer como uma civilização alegre e bela. Sobre estas bases, teremos o convívio ainda mais gratificante nos próximos quinhentos anos o que será devidamente comemorado nesta Casa França-Brasil.